O novo marco do saneamento básico

O novo marco do saneamento básico

O Novo Marco do Saneamento Básico – lei 14.026/2020 – representa um importante avanço para a política pública brasileira, com relevantes impactos na saúde, no meio ambiente e em investimentos, já que conta com instrumentos claros e objetivos de caminhos a serem perseguidos ao longo dos próximos 14 anos.

Entre inúmeras inovações da lei, destaca-se que ela:

  • Permite que o operador privado, vencedor de um processo licitatório de privatização, absorva as prestações anteriormente pactuadas por contratos de programa, assumindo que, quando não há alteração de prazo e objeto, não é necessária nova rodada legislativa de aprovação;
  • Exige a realização de licitação para a prestação do serviço de saneamento básico, não sendo mais possível assinar contratos de programa com dispensa de processo concorrencial;
  • Define uma meta clara (99% de atendimento de água e 90% de atendimento de esgoto) em um prazo também claro (31/dez/2033), com um waiver até 1º de janeiro de 2040 (6 anos a mais) caso os estudos para a licitação da prestação regionalizada comprovem que o contrato não consegue absorver o prazo principal (será necessária regulamentação);
  • Regulamenta o Art. 25 da Constituição, em linha ao acórdão STF resultante da ADI 1.842/2013, criando o instrumento das “Prestações Regionalizadas”, onde os municípios enquadrados como “interesse comum” (fundamentalmente, regiões metropolitanas) têm adesão compulsória, e aqueles de “interesse local” aderem de maneira facultativa;
  • Interrompe novos contratos de repasse de recursos federais (onerosos e não onerosos) aos municípios que optarem por não fazer parte da prestação regionalizada;
  • Limita o instrumento de “subdelegação”, que era utilizado pelas estatais como uma pseudo-PPP para contratar um operador privado que entregava o serviço, mantendo a existência da empresa “por cima” como interface ao consumidor (figura do “atravessador monopolista”, que encarece o custo final do serviço), mas dando um espaço de até 25% para esse instrumento e, ainda, dando um prazo de 12 meses para que as PPPs com modelagem em curso, mesmo em regiões metropolitanas, possam ter seus contratos assinados;
  • Exige que todos os contratos de programa (que não foram “estressados” por processo competitivo) tenham, até 31 de março de 2022, a inclusão de metas (de universalização, de redução de perdas e de qualidade) e, neste momento, exige a comprovação de que possuem capacidade financeira para fazer frente a esses investimentos;
  • Determina que, após 5 anos da assinatura do aditivo com metas (e, a partir de então, anualmente), a agência reguladora avaliará o cumprimento dessas metas – e, caso não sejam entregues por 3 anos em um intervalo de 5 (janela móvel), o contrato enfrentará processo de caducidade;
  • Responsabiliza, por improbidade administrativa, o gestor público que não definir as metas no prazo ou que, uma vez definidas, não garanta sua entrega; e
  • Define a ANA como reguladora de referência, a nível nacional.

Importante destacar que, à exceção do último item, que define a ANA como reguladora de referência, nenhum dos outros itens constava nas Medidas Provisórias do governo anterior, cuja principal inovação se dava, à época, pela inclusão do “Artigo 10-C”, que exigia que, antes de assinar um contrato de programa sem licitação, houvesse uma chamada pública no mercado, para verificar se algum operador privado teria interesse comercial naquela área.

Além da evidente indução ao cherry-picking (haveria interesse apenas penas áreas mais rentáveis), este processo seria facilmente manipulado, pois bastaria a tarifa oferecida ser insuficiente para viabilizar a operação, o que afastaria os agentes privados (e, na sequência, já com o contrato assinado com a empresa pública, a tarifa seria reajustada – já que contratos sem licitação se beneficiam de maior flexibilidade de reajustes tarifários).

De qualquer forma, frisa-se que colocar a ANA como reguladora de referência não é pouca coisa: em um cenário de pulverização regulatória, este movimento será muito importante para a redução dos custos de transação e desburocratização do setor (hoje, há casos como o da CASAN, que é sujeita à regulação de três agências diferentes). Aliás, vídeo recentemente resgatado dos acervos da Fundação FHC mostra o então diretor-geral da ANA, Jerson Kelman, há quase 20 anos, defendendo este conceito de regulação uniforme e regionalização. Se tivéssemos realizado este movimento naquela época, o setor certamente estaria em outro patamar.

Assim, destaca-se o importantíssimo avanço do novo marco do saneamento básico para o país, que deverá observar três grandes ondas de oportunidades nos próximos 8 anos:

  • A primeira, decorrente da voluntariedade dos governadores e dos titulares em atrair capital privado (por meio de privatizações, que agora são permitidas, ou de novas concessões) (2020 a 2022-23);
  • A segunda, decorrente do cancelamento dos contratos que não conseguirem comprovar capacidade financeira para honrar o programa de investimentos (comprovação até 2022, com oportunidades reais de licitação entre 2023 e 2024); e
  • A terceira, decorrente do processo de caducidade dos contratos que não entregarem as metas pactuadas em 2022 (avaliação começa em 2027 ou 5 anos após a inclusão das metas, caso sejam incluídas antes; oportunidades reais de licitação entre 2028 e 2030).

Provavelmente os contratos que forem caducados pela não-entrega das metas, após 2027, poderão observar a janela de prorrogação da universalização até 2040, pelo encurtamento do prazo remanescente. Ainda, caso necessário o apoio financeiro federal, é importante observar que a nova lei 14.026/2020 modificou o § 1º do Art. 50 da lei 11.445/2007, trazendo o comando de que:

§ 1º Na aplicação de recursos não onerosos da União, serão priorizados os investimentos de capital que viabilizem a prestação de serviços regionalizada, por meio de blocos regionais, quando a sua sustentabilidade econômico-financeira não for possível apenas com recursos oriundos de tarifas ou taxas, mesmo após agrupamento com outros Municípios do Estado, e os investimentos que visem ao atendimento dos Municípios com maiores déficits de saneamento cuja população não tenha capacidade de pagamento compatível com a viabilidade econômico-financeira dos serviços.

Esse comando abre espaço para que o recurso federal seja prioritariamente alocado em Parcerias Público-Privadas (PPPs) patrocinadas – ou seja, caso um estado esgote as possibilidades de regionalização e, ainda assim, a necessidade de investimento supere a capacidade de pagamento da população, o governo federal poderá aportar a diferença. Essa é uma mudança enorme de conceito, posto que, hoje, o apoio federal se dá fundamentalmente pela transferência pura e simples aos titulares, que, de forma geral, aplicam esses recursos de maneira ineficiente (vide a imensidão de obras paralisadas no país). Com o operador privado, é amplificado o conforto de melhor uso do recurso público, já que houve um processo licitatório competitivo, e a eficiência (menor valor) foi estressada.

Portanto, hoje, apresenta-se três alternativas para os governadores (controladores das empresas estatais, que representam 70% do mercado) e titulares (responsáveis pela garantia do serviço):

  1. Privatização imediata. Neste caso, os contratos se mantêm em vigor (mesmo com a inclusão de metas, prevista para ocorrer até 31 de março de 2022, não é necessário aprovação das câmaras municipais – a não ser que haja alteração de prazo ou objeto);
  2. Organização do estado por “Prestações Regionalizadas” (PR) e organização de concessões plenas por área. Neste caso, há um processo burocrático maior (organização das PRs por lei complementar e instituição do mecanismo de governança, por colegiado interfederativo); porém, o resultado é mais poderoso: garante-se a reorganização do objeto dos contratos (eventualmente, alguns possuem apenas objeto de água, e não de esgoto), a inclusão da maior parte do município do estado e a homogeneização das regras e dos prazos em um único instrumento, por PR; ou
  3. Permanência da empresa estatal até o fim dos contratos. Neste caso, é importante observar o que acontecerá no checkpoint de 31 de março de 2022: a empresa pode falhar no teste e perder todos os contratos, passar parcialmente, garantindo a permanência da prestação em alguns municípios ou passar no teste para todos os municípios. Nas duas últimas hipóteses, a empresa poderá levar seus contratos apenas até seu fim ordinário, devendo os titulares se organizarem para garantir a continuidade da operação do sistema após o fim do contrato – ou absorvendo essa prestação para si (afinal, a prestação direta continua sendo possível, pelo artigo 175 da Constituição Federal), ou licitando (individualmente ou regionalmente, dependendo do modelo) o serviço para outro operador.

Importante ressaltar que a lei 14.026 traz um instrumento novo e poderoso aos governadores que, por questões políticas ou financeiras, não consigam privatizar plenamente sua companhia. Assim como demonstram os casos da CEDAE e da CASAL, há o início de um movimento de “desverticalização” do setor, onde a rede de distribuição pode ser desacoplada do sistema de captação/adução/tratamento. Com isso, é possível que uma empresa que permaneça pública tenha como foco a produção e fornecimento de água para a empresa privada, que assume a operação da rede (com um WPA – water purchase agreement – de longo prazo, definido antes da licitação)

Fonte: Jota