Federalismo de papel

Federalismo de papel

O governador do Paraná, Carlos Massa Ratinho Junior, tem defendido constantemente, em palestras, a mudança dos pilares do federalismo brasileiro, com a autonomia dos 27 entes federativos (estaduais e distrital) para aumentar o tempo de prisão de criminosos, por exemplo. A proposta seria de uma emenda constitucional que permitiria a legislação penal aos estados como competência concorrente, e não mais privativa da União, com cada estado tendo a sua própria legislação penal, diferenciando as regras de punição para os tipos penais.

Segundo ele, “o problema do Brasil não é prender, mas sim soltar bandido. Acredito que precisamos fazer uma mudança constitucional que permita que cada estado possa legislar sobre a questão penal. Hoje se um bandido assassina um trabalhador, ele pega oito anos de cadeia. Com dois anos, está solto”. E acrescenta: “tenho certeza que se eu mandar um projeto de lei para a Assembleia Legislativa do Estado, propondo que alguém que assassine um trabalhador receba uma pena de 40 anos de prisão, essa lei seria aprovada no dia seguinte”. “É uma mudança que precisa ser discutida [1].”

O federalismo é a forma de organização do Estado brasileiro e é cláusula pétrea (artigo 1°, caput, combinado com artigo 60, §4°, I, CF), não podendo ser objeto de deliberação a proposta de emenda à Constituição tendente a aboli-lo. São características fundamentais da forma federativa do Estado brasileiro: (1) descentralização político-administrativa fixada pela Constituição, por meio do processo de repartição das competências legislativas e tributárias; (2) autonomia dos estados federados, de acordo com a Constituição; (3) participação das vontades parciais na vontade geral, que é a participação dos Estados federados nas decisões da União (Senado); (4) auto-organização dos Estados-membros por meio de Constituições próprias; (5) existência de órgãos próprios dos estados-membros para o exercício das funções legislativa, executiva e jurisdicional.

Grandes baluartes do Direito brasileiro participaram com suas ideias e ideais do debate federalista na Assembleia Nacional Constituinte de 1988, destacando-se certamente Raul Machado Horta, Paulo Bonavides, Paulo Lopo Saraiva, Osny Duarte Pereira, Rosah Russomano, José Alfredo de Oliveira Baracho e Paulo Brossard [2].

Raul Machado Horta (1923-2005), professor catedrático de Direito Constitucional da UFMG, identificava uma hipertrofia da União no texto da Constituição pretérito e um monopólio legislativo da União, numa relação de dependência crescente dos Estados em relação ao governo federal. Propunha, assim, um federalismo de equilíbrio ou cooperativo, com uma maior eficiência na repartição de rendas federais, a descentralização de competências da União e o enriquecimento da autonomia dos Estados com novas competências [3].

Paulo Bonavides (1925-2020), professor emérito da UFC, e Paulo Lopo Saraiva (1938-), professor emérito da UFRN, possuem pensamentos semelhantes e criticavam o descaracterizado cenário federativo brasileiro e a intervenção excessiva da União nos estados, afigurando-se como solução inovadora de suas ideias o modelo do “federalismo das regiões”. Neste, os estados se aglutinariam em regiões (Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste), com a criação de um órgão de representação regional, que, deveria ter seis representantes por região — número equivalente ao dobro de senadores por Estado —, além de uma Assembleia Regional, que acumularia as funções executivas e legislativas. Essas Assembleias contribuiriam para a descentralização do federalismo, com a tentativa de desconcentração do poder eminentemente majoritário da União para um polo de poder regional e a descentralização sob o ponto de vista político-administrativo, eis que a divisão federativa do Brasil tão somente pela via legal não foi capaz de atender à vocação geográfica regionalista brasileira [4].

Osny Duarte Pereira (1912-2000), desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, teve importante participação como expositor na Subcomissão dos Estados e na Subcomissão da União e Territórios nas audiências da Assembleia Nacional Constituinte. Para o professor, a distribuição das competências entre União e estados, no fundo, delimitava os interesses de cada oligarquia. Existia a necessidade da previsão de uma estrutura federativa que pudesse reduzir os desníveis de miséria e incentivar a criação de defesa das indústrias nacionais, sendo imperativas as medidas de descentralização que fossem coerentes com os problemas sociais do Brasil.

Pereira exemplifica: “é um absurdo que se faça um Código de Processo Penal para todo o país, quando as peculiaridades da Amazônia e as circunstâncias especiais do interior de muitos estados estão de tal forma em conflito que as disposições processuais não podem ser cumpridas” [5].

Rosah Russomano (1919-1999), professora emérita da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), na exposição sobre federalismo na Subcomissão dos Estados na Constituinte, defendeu acertadamente que a centralização descomunal do sistema federativo brasileiro descaracterizava o próprio federalismo e que há três vigas-mestras a serem observadas: (1) fortalecimento da participação dos Estados-membros na formação da vontade federal; (2) repartição de competências efetuada no próprio texto da Constituição, devendo-se aumentar o poder dos estados, uma vez que o favorecimento a União torna o sistema político ainda mais autoritário e derrete o federalismo; (3) dinamização do Poder Constituinte dos Estados-membros. Sustentava, desse modo, um sistema federativo que fortalecesse o Poder Legislativo, descentralizasse para o Estados competências legislativas da União e aumentasse o Poder Constituinte Decorrente dos Estados [6].

José Alfredo de Oliveira Baracho (1928-2007), professor titular da Faculdade de Direito da UFMG, sustentava uma federação ainda mais descentralizada, com a possibilidade de o Estado-membro legislar sobre direito material e com a obrigatoriedade da participação dos estados federados na modificação da ordem constitucional. Registra-se que, atualmente, a Constituição do Brasil já foi alterada por 136 emendas constitucionais ordinárias e seis emendas de revisão constitucional, e a compreensão do professor Baracho dificultaria, sem sombra de dúvidas, todo esse “remendo” na nossa atual Carta.

Noutro ponto, Baracho protegia uma relação direta e clara entre federalismo e democracia, pois um sistema com eleições livres e alto índice de liberdade de expressão proporcionaria um ambiente no qual os Estados e suas populações pudessem participar ativamente das decisões a nível federal, o que aproximaria o Brasil da prática de um federalismo autêntico [7].

Paulo Brossard (1924-2015), professor da PUC-RS e ilustre ministro do STF, expôs o federalismo como uma necessidade geográfica e que deve ser estudado não só por teorias estrangeiras, mas ainda mais pela história constitucional brasileira, pois, num país de dimensões territoriais continentais como o Brasil, deve-se reconhecer que a geografia impõe a adoção de um Estado federal. Além disso, Brossard defendia o parlamentarismo como o sistema de governo mais compatível com a forma federativa de Estado, criticando o presidencialismo por suas dificuldades de governabilidade [8].

Solução está na transferência legislativa

Dito isso, impõe-se salientar que o grande problema do atual federalismo brasileiro é a falta de descentralização e a necessidade vital para a sua sobrevivência de que o poder fique mais perto do povo. Não há dúvidas da ainda hodierna excessiva centralização do poder da União e de que se deve buscar uma maior participação dos estados por meio da descentralização de competências legislativas da União, bem como uma nova e melhor compreensão por parte do Poder Legislativo federal do artigo 22, parágrafo único, do texto constitucional.

A solução não está em uma nova emenda à Constituição, como aponta o governador Ratinho Junior, mas sim na transferência legislativa, na qual, por lei complementar, o Congresso pode autorizar os Estados a legislarem sobre questões específicas das matérias privativas à União. O maior uso da transferência legislativa aos estados por parte do Parlamento federal representaria um enorme progresso para a descentralização efetiva do federalismo brasileiro, que deveria ter por essência e maturidade a maior participação dos estados nas diversas competências legislativas privativas do poder federal, previstas nos 30 incisos do artigo 22 da CF.

Não se pode autorizar os estados a legislar sobre toda a matéria do Direito Penal, mas apenas sobre questões específicas. Ou seja, não pode ser sobre toda matéria de Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho (artigo 22, I), mas sobre questões específicas a eles referentes, o que já fortificaria, e muito, o federalismo brasileiro e o aperfeiçoamento democrático do país por meio da participação mais ativa dos estados e do aumento dos mecanismos de controle das decisões dos órgãos do poder federal.

Registra-se, por fim, que até o presente momento tivemos apenas a LC 103/00, tratando de matéria de direito do trabalho, que autorizou os estados e o Distrito Federal a instituir o piso salarial a que se refere o inciso V do artigo 7º da Constituição, isto é, piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho, por aplicação do disposto no parágrafo único do seu artigo 22. Isso demonstra sobremaneira que os ideais do federalismo brasileiro não passam, em 2025, de um simples e minúsculo pedaço de papel, ao concentrar sobremaneira o poder de decisão na esfera exclusiva da União.

[1] Disponível aqui.

[2] Conferir, por exemplo, a tese de Doutorado de Leonam Baesso da Silva Liziero: Estado federal no Brasil: o federalismo na constituinte de 1987/1988 e a descentralização pela assimetria, 2017, e Leonam Liziero, Federalismo e Estado Federal. RJ: Sankoré, 2024.

[3] HORTA, Raul Machado. Organização constitucional do federalismo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 22, n. 87, jul/set. 1985, p.5-22.

[4] Assembleia Nacional Constituinte. Diário da Subcomissão dos Municípios e Regiões. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1988; BONAVIDES, Paulo. O caminho para um federalismo de regiões. Revista de Informação Legislativa, ano 17, n. 65, pp.115-126, jan/mar. 1980.

[5] Assembleia Nacional Constituinte. Diário da Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios, Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1988, p. 65.

[6] Assembleia Nacional Constituinte. Diário da Subcomissão dos Estados. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1988.

[7] Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

[8]  Federação e parlamentarismo. Porto Alegre: Livraria Globo, 1951; Assembleia Nacional Constituinte. Diário da Subcomissão dos Estados. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1988.

Disponível em CONJUR