Reforma tributária aumenta a desigualdade de gênero

reforma tributária aumentam a desigualdade de gênero

As propostas de reforma tributária em discussão no Congresso não resolvem um dos grandes problemas do sistema tributário atual: a regressividade. Na busca por uma suposta simplificação, com a fixação de alíquotas únicas e o fim de benefícios fiscais, os projetos – em especial a PEC 45 – acabariam por manter ou aumentar a regressividade, gerando uma carga tributária maior para as mulheres, principalmente para aquelas chefes de família e de renda mais baixa.

A conclusão é do trabalho “Reforma tributária e desigualdade de gênero: contextualização e propostas”, do grupo de estudos Tributação e Gênero, do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Segundo o estudo, de um ponto de vista geral, as três propostas em análise pela Comissão Mista do Congresso Nacional buscam uma suposta eficiência econômica e adotam a simplificação como valor absoluto, deixando de lado valores fundamentais garantidos na Constituição de 1988, como o de
redução das desigualdades e erradicação da pobreza.

“O discurso em torno da necessária neutralidade fiscal assume ares retóricos em um país cujos níveis de desigualdade não permitem a estruturação de um sistema tributário com essas características. Neutralidade, no caso brasileiro, equivale ao aumento da regressividade e da concentração de renda”, aponta a pesquisa.

Para as pesquisadoras, o principal problema está em reformar apenas a tributação sobre o consumo, prevendo uma alíquota única a todos, sem distinção. O fato aliado ao fim de benefícios fiscais contribui para que as pessoas mais pobres paguem proporcionalmente mais tributos, o que prejudica principalmente as mulheres, em especial as mulheres negras.

“Falar em abstrato é importante. Mas para quem, de fato, vai piorar? Vai piorar para a população de baixa renda. E quem é a população de baixa renda? É essa mulher negra e chefe de família. É para ela que vai piorar especificamente essa proposta”, avalia Tathiane Piscitelli, professora da FGV e uma das coordenadoras do estudo.

Na análise das pesquisadoras responsáveis pelo estudo, é preciso aproveitar o ambiente reformista para trazer para o debate a justiça fiscal a grupos mais sensíveis socialmente. “O grupo percebeu que nas propostas não havia nenhuma mudança determinante para a redução das desigualdades, não localizamos nenhum instrumento que sirva de indutor de comportamento na busca dessa redução”, afirma Lana Borges, pesquisadora e procuradora da Fazenda Nacional.

De acordo com o estudo, a PEC 45/2019 reforça a regressividade do sistema atual pela eliminação absoluta de todo e qualquer incentivo fiscal, inclusive aqueles relacionados aos bens da cesta básica.

“Na PEC 45 consta um mecanismo de suposta mitigação desse efeito para a população de baixa renda, que é a devolução dos valores. Só que essa devolução é obscura e nós não temos como saber como vai ser o desenho dela. Em uma nota técnica que o CCIF [Centro de Cidadania Fiscal, responsável pela ideia da PEC 45] soltou fala-se que em uma compra de R$ 250 haveria devolução integral, mas se fosse mais do que isso, a devolução não seria integral”, explica Tathiane Piscitelli.

“Fora que existem constrangimentos orçamentários para que a devolução realmente aconteça e a gente sabe que quando existe uma disputa orçamentária perde o mais fraco e, muito provavelmente essas pessoas não verão a cor desse dinheiro. Essa retórica em torno da devolução é frágil”, complementa a pesquisadora.

Já em relação à proposta do Executivo, o PL 3887/2020, que extingue o PIS e a Cofins cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), as pesquisadoras avaliam que, ao aumentar a carga tributária sobre o setor de serviços, dificulta-se o acesso a bens essenciais, como saúde e educação, reforçando também a regressividade do sistema.

De acordo com o estudo, a PEC 110/2019 está mais alinhada com a mitigação da regressividade porque prevê a possibilidade de atribuição de benefícios fiscais a bens e serviços de primeira necessidade. O grupo defende que sejam instituídos incentivos fiscais voltados ao fim da desigualdade de gênero.

Segundo a pesquisadora e procuradora da Fazenda Nacional Herta Rani Teles Santos, o tratamento tributário entre os grupos sociais e econômicos é diferente, e essa ótica continua nas propostas de reforma em discussão.

“O sistema tributário não é voltado para a mulher, não é voltado para a mulher negra, não é voltado para a mãe solo, nem para aquela mulher que está divorciada e recebendo a pensão do marido. É voltado para as grandes empresas, para os grandes setores, que têm direito a parcelamentos, que sabem mexer no sistema tributário, que entram com ações e mandados de segurança e vão postergando os pagamentos de tributos. Mas a pessoa comum, a mãe de família, que está ali no supermercado, ela não tem acesso a essa postergação de pagamentos”, diz.

A pesquisadora e procuradora federal Lise Tupiassu reforça ainda que a reforma está pautada na tributação sobre o consumo e não altera nada em relação à regressividade, que já é muito forte no Brasil. Para ela, com base no que está sendo proposto, a tendência é de piora no cenário. “É um pouco chocante, porque percebemos que está havendo uma grande discussão sobre a reforma tributária e não se está efetivamente discutindo sobre uma possibilidade de mudar o caráter dessa tributação”, diz.

“O ideal seria mexer na base tributária, buscar uma base menos regressiva. A solução pensada [na PEC 45] está sendo essa pseudo devolução, que não atende aos rincões do Brasil em que as pessoas não têm, sequer, acesso ao sistema bancário”, complementa.

Tributação sobre o consumo

Com base na constatação de que regressividade e desigualdade de gênero andam juntas as pesquisadoras formularam propostas para tornar o sistema tributário mais justo para as mulheres. São alterações tanto na tributação sobre o consumo, com a concessão de benefícios fiscais, quanto na tributação sobre a renda, com a possibilidade de deduções no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ).

“É preciso pensar o Direito Tributário também como um instrumento de alteração da realidade. O Direito Tributário tem um papel central do ponto de vista da Justiça, e não temos utilizado ele sob essa perspectiva”, afirma Tathiane Piscitelli.

Entre as propostas apresentadas pelo grupo está a isenção de PIS, Cofins e IPI sobre absorventes, fraldas, contraceptivos e medicação hormonal utilizada no tratamento de menopausa ou redesignação sexual. Além disso, as pesquisadoras propõem a manutenção da desoneração dos itens da cesta básica.

No estudo o grupo defende que itens de primeira necessidade das mulheres deveriam ter uma carga tributária menor, o que garantiria o amplo acesso. É o caso dos absorventes e assemelhados, como calcinhas absorventes e coletores menstruais. “Segundo dados da Receita Federal, a carga tributária incidente sobre o absorvente higiênico é de 27,5%, assim distribuídos: média de 18% referente ao ICMS, PIS 1,65% e COFINS 7,60%. Assim, a título de exemplo, um pacote de absorvente higiênico que custa R$ 2,28 contém, aproximadamente, R$ 0,62 somente de tributos”, exemplifica o grupo através do estudo.

Já no caso das fraldas infantis ou geriátricas, a constatação do grupo é que na maior parte das vezes as funções de cuidado recaem sobre as mulheres. Assim, os custos com esses bens em geral são suportados por elas, e garantir a isenção corrigiria uma distorção tributária de gênero.

Por fim, no caso dos contraceptivos, o grupo destaca que a isenção é necessária apesar da distribuição gratuita no Sistema Único de Saúde. Isso porque, além da disponibilização ser insuficiente, a isenção poderia garantir que as mulheres pudessem utilizar o contraceptivo que melhor se adapta às suas necessidades.

“Considerando a importância dos métodos contraceptivos no planejamento familiar e que os cuidados com a família recaem, especialmente, sobre as mulheres, é importante uma política pública que, paralelamente à distribuição gratuita, garanta também a desoneração tributária incidente sobres os métodos contraceptivos. As mulheres não podem ter seus direitos, duramente conquistados, obstaculizados por dificuldades de acesso aos métodos anticoncepcionais”, destaca o estudo.

Para as pesquisadoras, apesar de parte das propostas de reforma propor o fim dos benefícios fiscais, o momento é adequado para discutir o tema do ponto de vista da igualdade de gênero. “Se propõe que diante da necessidade de revisão de incentivos, que os incentivos a serem implementados tenham a questão de gênero como fundamento”, afirma Lise Tupiassu.

Tributação sobre a renda

Já na tributação sobre a renda as pesquisadoras defendem que os gastos com trabalhadores e trabalhadoras domésticas e com a educação dos funcionários e seus descendentes possam ser deduzidos do IRPF dos empregadores. Além disso, seria importante garantir a isenção da pensão alimentícia na declaração do responsável não alimentante, ou seja, da pessoa que não é responsável pelo pagamento da verba.

Já as empresas teriam redução da base de cálculo do IRPJ com a contratação de mulheres negras e chefes de família.

Em relação aos trabalhadores domésticos, que são em sua maioria mulheres, as pesquisadoras defendem que a possibilidade de dedução no IRPF aumentaria a formalidade no setor. Já a possibilidade de dedução de gastos com educação da base de cálculo do imposto garantiria melhor formação às mulheres e seus filhos.

“O objetivo geral é impulsionar a capacitação dos profissionais e ampliar as possibilidades de estudo das pessoas de baixa renda, conferindo-lhes maior incentivo e mais acesso ao principal mecanismo de ascensão social, que é a escolaridade, assim como estimular o empregador ou empregadora doméstica a impulsionar os estudos de seu ou sua colaboradora”, conclui o estudo.

No caso das pensões alimentícias, a proposta do grupo é que a verba não tenha que ser declarada como renda tributável pela pessoa que a gerencia. Atualmente, a pensão pode ser deduzida da base tributável apenas na declaração do contribuinte que promove o pagamento.

Por fim, para as empresas o grupo propõe que sejam criados incentivos fiscais às companhias que tenham mulheres em cargos de gestão. A contratação de negras, vítimas de violência doméstica e mulheres chefes de família também seria alvo de benefícios (Fonte: JOTA).